Maroni J. Silva *
A desconstrução do pacto neoliberal europeu, cujas consequências se refletem na economia mundial, evidencia a permanência de parte das tensões e expectativas geradas pela transição do fordismo para a economia flexível a partir dos anos de 1990. Contudo, ao mesmo tempo em que esse período impôs desafios aos empreendedores forçou às empresas inseridas na globalização a se reinventarem. Por meio da criatividade, inovação e ousadia as sobreviventes saíram fortalecidas da reestruturação produtiva, consolidaram posições adquiridas no mercado globalizado e conquistaram novos nichos de negócios.
Neste salve-se quem puder, surgiram algumas tecnologias de gestão inusitadas, como a internalização da religiosidade nas empresas, mediada pelas culturas organizacionais. A estratégia visa mobilizar energias sagradas e psíquicas por meio de ações e relações simbólicas, despertando a motivação e a proatividade de funcionários em favor dos interesses e metas econômicas das empresas, conforme abordagem deste texto elaborado a partir do estudo de caso descrito no meu livro Magazine Luiza Negócio & Cultura.
Crédito: Magazine Luiza.
O mito caipira da boa vizinhança presente na cultura interiorana de São Paulo, o qual deu suporte sociocultural ao Magazine Luiza, desde sua fundação, em 1957, até a reestruturação, em 1991, acabou sendo incorporado a uma nova visão de mundo, em que a crença e a fé foram reificados, destacando-se entre seus valores corporativos. Este novo ethos onde as fronteiras entre o sagrado e o profano são cada vez mais fluidas, criou as condições para uma quebra de paradigma na gestão de pessoas, facilitando a interação social por meio de rituais simbólicos.
Com isso, ao invés de administrar o conflito latente entre capital e trabalho por meio de regras rígidas nem sempre eficazes no estabelecimento de consensos, a empresa instituiu relações flexíveis na gestão mediadas pela religiosidade. Esse processo apropriou-se do pertencimento religioso dos funcionários, buscando criar um clima de adesão, cordialidade e, consequentemente, de maior produtividade.
Tal receita vem fazendo escola nas chamadas ciências da administração e se propagando entre as novas práticas de gestão, ancoradas no “paradigma econômico plural”, assim denominado em Globalização e Diversidade Cultural, pelo economista Hassan Zaoual, professor da Université du Littoral, da França. Sua abordagem ressalta os sistemas de representações, pertencimento cultural e aprendizagem organizacional categorias estruturantes do paradigma.
Entram em cena, portanto, valores invisíveis ou, mais especificamente, simbólicos, que passam a influenciar fortemente a sociedade e as organizações de modo especial na pós-modernidade. Tais fenômenos impactam fortemente o mundo dos negócios globalizados, pontuado por dimensões culturais que vão delineando os contornos sociológicos do modo de produção flexível.
A relação entre capitalismo e religião, como se sabe, teve o sociólogo Max Weber como grande estudioso e inspirador através de sua obra clássica Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. O livro analisa a gênese desse processo de produção, na Alemanha, na passagem do século XIX para XX. Mas o respaldo teórico mais ressente surgiu na França, em 2009, por meio do livro O Novo Espírito do Capitalismo, escrito pelo sociólogo Luc Boltanski e pelo especialista em gestão e sociologia Ève Chiapello.
Inspirados também em Weber, eles caracterizam fatores sociais, culturais e políticos contemporâneos que constituem parte do novo espírito do capitalismo. Trata-se de uma superestrutura que se apresenta para fortalecer esse modo de produção por meio de relações aparentemente difusas e simbólicas entre capital e trabalho no mundo globalizado. A pesquisa baseou-se na performance da economia francesa, cujas mudanças, segundo eles, retratam a evolução do capitalismo mundial como um todo. Esse novo estágio lhe permitiu não apenas integrar as críticas anticapitalistas, inclusive do movimento social de 1968, como também cooptar parte importante dos atores e sujeitos sociais que ousaram enfrentar o status quo, em maio daquele ano.
A religiosidade em si é amplamente discutida como uma categoria social que faz parte da vida humana, inclusive de não praticantes de nenhuma doutrina específica. Quanto a sua presença nas empresas tematizada em minha pesquisa de Doutorado, a religiosidade encontra respaldo também em uma espécie de reencantamento do mundo que parece inserida na Teologia da Prosperidade. De acordo com essa filosofia praticada em cultos de inspiração neopentecostais, como se observa inclusive nos rituais do Magazine Luiza, pela fé é possível construir o Paraíso aqui na terra, porém representado pelo acesso ao mundo dos bens e à mobilidade social.
Por sua frequência, o Rito da Comunhão abordado no meu livro representa, talvez, o mais significativo em termos de reforço da cultura da empresa, embora existam outros eventos semelhantes. Este realiza-se em cada uma das lojas, unidades e departamentos da empresa, todas as segundas-feiras, antes do expediente. Nessa oportunidade, os funcionários se concentram, dramatizam dinâmicas de motivação que às vezes envolvem performances corporais ou citação de mensagens de autoajuda, pronunciada em voz alta, em discurso ou palavra de ordem, cantam os hinos Nacional e o da empresa, lembram os aniversariantes do mês, comemoram os resultados de vendas ou choram por não alcançar as metas estabelecidas.
Na sequência, de mãos dadas, formam um círculo semelhante às correntes de fé que acontecem em rituais religiosos de perfil pentecostal que muitos frequentam em suas respectivas igrejas onde buscam reforço espiritual, inclusive para serem funcionários admirados e “de valor”. Neste momento, rezam o Pai Nosso, de cabeça inclinada para o chão quando alguns, de olhos fechados, renovam seus propósitos com o sagrado ou Absoluto, como é denominado internamente.
As diferentes visões de mundo cultuadas por católicos, evangélicos e todas as demais representações religiosas presentes o Magazine Luiza aparentemente se harmonizam por meio do Jeito Luiza de Ser que sintetiza seu DNA ou “alma da empresa”. No interior desse cosmo prevalece a noção de que trabalho e religião comungam o mesmo objetivo, ou seja, o bom desempenho econômico da empresa, tido como única condição capaz de concretizar a materialidade e garantir o acesso ao “Paraiso” terreno para patrões e empregados.
*Maroni J. Silva é jornalista, sociólogo, mestre e doutorando em Antropologia pelo Programa de Estudos Pós-graduados da PUC-SP, autor do livro Magazine Luiza Negócio & Cultura, lançado pela Editora Olho D´Água, e sócio-diretor Textocon Comunicação & Cultura Organizacional.